Olhei as fotos. Vestidinho e faca na mão. Toda bonitinha. Aquele adorno que a gente acha que vai muito bem no tipo de vitrine-narcisa-maníaca que é o Instagram. Acontece que me incomoda a falta de conjuntura, especialmente quando me sinto embebida em contexto. Pensei naquele texto que vomitei no último verão. Abri o bloco de notas e dei risada com o título que eu já não lembrava ter escrito: 'Férias Feridas'. Diz assim:
"Os homens me importunam. Me contam a melhor maneira de lidar com situações que nunca viveram. O ajuste de tom adequado pra que eu seja recebida com a abertura que eles desconhecem. Me falam sobre a minha expressão indevida. O meu riso inconveniente. Será que as pessoas pensam que eu me relaciono com um cara que insiste em reprovar o meu comportamento? Na praia com o meu filho, eles ocupam o espaço como se fosse deles. Tratam com muita seriedade uma bola que não pode cair no chão mas que, a qualquer momento, virá parar na minha cabeça. Mudo de lugar. Repetidas vezes. Explico que as crianças, aqueles seres invisíveis dos quais provavelmente já ouviram falar, não estão conseguindo passar entre eles pra chegar no mar. Numa brecha da bola, percebo um ambulante caminhando até mim. Mão na genitália, olhos na minha direção. "Quer?". Silêncio. “Não entendi”, respondo. “É grande”, ele rebate. Enquanto trabalho num cálculo periférico e me levanto em direção ao meu filho, ele ainda insiste. “Você pode tirar uma foto pra ver em casa”. Penso naquela história engraçada da praia ser democrática e decido por levar o Bento na piscina do prédio da minha avó. Idealizo a possibilidade de um ambiente sossegado que me permita dar continuidade à minha leitura. O livro, ganhador de prêmio, finalista do Pulitzer, conta a história de uma menina que, ainda criança, é expulsa de casa por denunciar os abusos do irmão. O ambiente é nostálgico pra mim. O mal estar também. Percebo ali, naquela hora, que o desconforto indecifrável de toda uma adolescência vivida naquele mesmo condomínio também se dá a partir de uma apropriação masculina. Um negócio esquisito que paira no ar. Na mesa ao lado, evito o único homem que conheço. Pelo que ouço, ele defende a não violência física contra crianças e, em determinado momento, me chama pra endossar a conversa. No meio dos seus, tão piores, ele me parece plausível pela primeira vez. Por dentro, sinto aquela velha combinação de raiva, medo e desdém. O amigo do conhecido, confessadamente agressor de criança, achou que seria gentil me dizer que eu poderia frequentar aquele espaço independente da minha avó. "Ai de quem disser que você não pode entrar aqui". Reforçando a minha repulsa àquela posição de comando que ele acredita pertencer a ele. Percebo as senhoras. Mulheres muito mais velhas que sempre estiveram ali. Agora noto que elas entram, fazem o que tem que fazer, seus exercícios, e vão embora. Eles intimidam e ninguém parece oferecer estranhamento. Uma dominação tão explícita e, ao mesmo tempo, tão invisível. O amigo insuportável não se contenta e, depois de falar pra eu largar o meu livro e sentar com eles, pergunta a minha idade. Joga a cabeça pra trás numa risada condescendente de quem acredita ser maior, melhor e mais experiente, ainda que não tenha compreendido 20% do que eu havia acabado de expressar da maneira mais didática possível. Será que se eu tivesse uma filha menina eu seria tão vigilante da minha própria maternidade? Será que toda essa exaustão se resume ao medo de criar um idiota?..."
Fecha aspas e esquece, né? Não tem como legendar uma coisa dessas no Instagram. Mesmo que eu quisesse, não cabe. Falta espaço, inclusive, literalmente. De repente eu poderia falar da série da Netflix, Pedaço de Mim, que tem me delineado a certeza de que grande parte do peso que eu sinto no meu lugar de mãe vem, na verdade, da quantidade de violência que um homem pode direcionar a uma mulher através de um filho. É a presença do medo agora estendida a uma parte sua ineditamente frágil, vulnerável, inocente e dependente sobre a qual, por diversas vezes, você não terá como atuar. Isso tudo misturado a uma quantidade imensa de culpa, confusão e arrebatamento que, não raramente, transborda num corpo que adoece. Na série, a protagonista Liana, interpretada por Juliana Paes, perde o ar em algumas falas enquanto as lágrimas escorrem pelo rosto e o desespero toma conta. Tem uma coisa nesse ar que falta, nesse pavor que petrifica que, infelizmente, me é familiar. Até então, Maid tinha sido a última produção a me fazer chorar a ponto de precisar apertar o botão de pausa. Não por acaso, estamos falando, nos dois casos, de mães que tentam sobreviver à situações repetidas de abusos.
É pra lá de urgente o entendimento de que não tem como falar de comportamento humano sem falar de infância. Ao mesmo tempo que não vai dar pra gente falar de infância sem legitimar as formas diretas, indiretas e inomináveis de utilização da maternidade como veículo de aprisionamento feminino. Fico pensando nos corpos machucados das mulheres que todos nós habitamos um dia e me pergunto em que tipo de sociedade viveríamos se a brutalidade não se fizesse presente desde o princípio. Não sei quantas mil pessoas estudando formas de organizar, sei lá, a economia, enquanto a gente já nasce na dívida da dor. Ás vezes eu acho extremamente exaustivo existir nessa dinâmica de enxugar gelo que a gente estabeleceu.
Também tenho passado mais tempo do que gostaria refletindo sobre a extensão desse sistema que aprisiona, amordaça, e enlouquece pra poder então, por fim, atestar uma suposta loucura. Em todos os grupos oprimidos que quando, finalmente, reagem de forma minimamente apropriada às atrocidades que recebem são descredibilizados. Eu, por exemplo, escrevo esse texto certa de que vai ter gente querendo se aproveitar dessa, ou qualquer outra tentativa minha de expressão, pra prosseguir com uma inversão de narrativas que já dura tantos anos. É difícil pensar em algo tão cruel como um algoz que se faz de vítima. Não é à toa que o termo gaslighting alavancou imensas proporções de pesquisas no últimos anos. Existe uma convocação autorizada ao antagonismo que é mesmo capaz de endoidecer gente sã.
Será que eu falo sobre as minhas experiências de silenciamento? Será que eu explico porque que, mesmo com medo, é difícil me acuar? Será que o povo sabe que foi na base de um urro de força que homem nenhum jamais será capaz de proferir que eu trouxe meu filho pro mundo?
Observo as fotos tiradas há três dias mais uma vez. Meu peito tá grande, dolorido e, não por acaso, começo a sangrar enquanto escrevo esse texto. Sinto que 34 anos depois, graças a uma quantidade imensa e profunda de trabalho, me sinto não só à vontade como bem representada com uma faca na mão. “Você conhece a música Suçuarana, né amiga?”. Perguntou Luisa, logo depois de enxugar as minhas lágrimas e um pouco antes de clicar as imagens ali de cima. Respondi que não mas lembrei de ir atrás e prestar atenção.
“Nenhuma filha - Terá mais nada a temer - Por essa selva - Nós vamos ser mais de mil - Fêmeas felinas - Enfurecidas no cio - Eu viro fera - Eu não vou mais recuar - Eu viro fera - Eu deixo o bicho pegar - Essa alegria - É minha libertação - A alforria - Assino com minha mão”
Com o compromisso de um breve reencontro e a certeza de que o impulso de baixo pode, também, ser o responsável por voos ainda mais altos, sejam muito bem vindos. Até já.
Aos prantos e sem vocabulário.
Enquanto filha esse texto foi um lembrete da empatia que se faz necessária na convivência com a mulher que me trouxe ao mundo,e por ele se impôs.